Relembrando Jornada nas Estrelas: Primeiro Contato
(29 de ago. de 2016)
Este é mais um post comemorando os 50 anos de Jornada nas Estrelas.
Enquanto a série original se aproxima de seu 50º aniversário (8 de setembro), o filme Jornada nas Estrelas: Primeiro Contato está para completar 20 anos desde seu lançamento original, em novembro de 1996.
O filme foi o oitavo produzido para os cinemas. O filme anterior, Generations, havia dividido fãs e crítica apesar do lucro. Aproveitando o aniversário de 30 anos da franquia, a Paramount insistiu em produzir o filme seguinte o mais breve possível. Com Rick Berman na produção, o mandato era seguir em frente com mais aventuras da Nova Geração de Picard no cinema.
Com os roteiristas Brannon Braga e Ronald D. Moore envolvidos, o próximo passo era encontrar a trama certa. Esse foi um processo bem menos doloroso e complicado que Generations. Eles não tinham mais a obrigação de fazer uma história separada com Kirk e companhia ou ter de inventar um plot tão complicado para juntar ele com Picard.
Logo de cara, ambos os roteiristas queriam lidar com os Borg. Como muitos sabem, os Borg foram a maior revelação na Nova Geração. Os vilões que deram certo. Quando a série foi concebida por Gene Roddenberry, os vilões originais eram os Ferengi, que óbviamente não deram nem um pouco certo devido ao design, deficiencias de roteiro e o fato de que funcionavam muito melhor como alívio cômico. Ninguém levava os Ferengi à sério.
Foi isso que permitiu ao então roteirista Maurice Hurley criar os Borg na série. Ao assimilar todos em sua coletividade, os Borg representam o fim da individualidade. São um vilão completamente impessoal e desprovido de emoções. Eles apenas consomem e conquistam sem jamais hesitar.
Braga e Moore também fizeram questão de incluir viagem no tempo para variar um pouco a trama. Como este elemento havia dado tão certo no quarto filme (o das baleias), foi uma decisão unânime para todos, incluindo o estúdio. Contudo, eles temiam que o fato do Borg não possuir vilões individuais afastaria o público. Eles exigiram a criação de um líder. Isso forçou a equipe a criar a nova personagem da Rainha Borg. Durante um bom tempo, muitos fãs temiam que a presença dela fosse arruinar o filme.
A trama foi bem mais simples. Picard havia sido assimilado pelos Borg na série e até hoje carregava as feridas da experiência. Agora, os Borg estão de volta atacando a Terra. A Frota Estelar monta um exército de naves para impedí-los. Graças a estratégia de Picard, eles conseguem destruir a nave, mas uma pequena esfera escapa e volta no tempo, assimilando a Terra no passado, apagando qualquer traço da Federação. A Enterprise, protegida pelo vortex temporal da esfera, sai imune e consegue viajar para o passado. Contudo, quando destroem a esfera no passado, os Borg conseguem se teletransportar para a nova USS Enterprise E e passam a assimilar a nave e sua tripulação por dentro. Cabe a Picard deter essa ameaça sem cair no gosto da vingança ao melhor estilo Ahab. Enquanto isso, Riker tem a missão de auxiliar o cientista Zefram Cochrane, cuja base foi avariada pelos Borg. Cochrane está para realizar o primeiro vôo warp da humanidade, cujo sucesso atrairá a atenção dos vulcanos criando uma situação de primeiro contato entre a humanidade e sua primeira raça alienígena.
Uma das primeiras versões do roteiro levava Picard e sua tripulação para o Século XIX, onde ele se envolveria em um caso amoroso com uma artista. Em uma reunião com Berman, Braga, Moore, Patrick Stewart e o recém-contratado diretor Jonathan Frakes*, foi decidido que esse rumo não daria certo. Enquanto Picard estava na Terra tendo esse caso, Riker estava na nave lutando contra os Borg. Todos resolveram que seria melhor mudar as posições dos protagonistas. Ao mesmo tempo, Braga e Moore decidiram mudar a ação para o Século XXI, explorando uma época até então pouco vista em Jornada. Já havia sido discutido em todos os seriados que a humanidade quase havia sido extinta numa Terceira Guerra Mundial antes de evoluir para o futuro utópico idealizado por Roddenberry.
*Frakes, além de interpretar Riker na série, já era um diretor experiente tendo dirigido episódios tanto da Nova Geração, mas também de Deep Space Nine e Voyager. Ele já estava cotado para dirigir Primeiro Contato. Um dos outros finalistas para o cargo foi o diretor James L. Conway, também veterano das mesmas séries, e um dos melhores diretores da equipe, tendo dirigido alguns dos melhores episódios de DS9. Frakes ganhou o cargo porque Patrick Stewart tinha poder de voto na escolha final.
Outro trunfo a favor da produção foi a volta de Jerry Goldsmith na composição da trilha sonora. Junto com seu filho Joel Goldsmith, ele não apenas ressuscitou o tema clássico de Jornada, mas também o tema Klingon, além de criar novos temas inesquecíveis para este filme. Considero a trilha de Primeiro Contato uma das melhores de toda a franquia, junto com a do primeiro filme, e é um dos motivos pelo qual Primeiro Contato funciona tão bem.
O filme foi um sucesso estrondoso dentre os fãs, críticos e também o público que não estava acostumado com Jornada. Um dos motivos pra esse sucesso (além da oportunidade de ver os Borg na tela grande com o devido orçamento e escala) foi a inclusão de uma personagem que serviu como ponte para esse público entrar na aventura. Ela se chamava Lily Sloane, com excelente interpretação de Alfre Woodard. Uma das poucas atrizes a conseguirem contracenar com Patrick Stewart no mesmo nível que ele, mesmo nas cenas mais intensas.
Lily é uma sobrevivente do Século XXI. No mundo desolado em que vive, ela busca acreditar na visão de Zefram Cochrane e seu projeto. Quando se depara com elementos do futuro como o andróide Data, o Klingon Worf, ou a própria Enterprise, a reação dela caracteriza a forma como um futuro diversificado e repleto de potencial é capaz de cativar aquele que não tem tanta fé na humanidade. Ao mesmo tempo, ela questiona abertamente a forma como Picard a sua tripulação funcionam. É a personagem que também critica a vivência estéril sem textura do Século XXIV. Ao mesmo tempo que ela funciona como um olhar único ao mundo utópico de Roddenberry, ela também questiona e critica esse mesmo mundo.
Há duas cenas que mostram esse contraste de forma gritante. Uma é a cena em que Picard abre uma janela da nave para desarmá-la e ganhar sua confiança. Ela parece uma garota inocente enquanto Picard mostra para ela de onde ele vem e que futuro a espera. A outra cena é a em que Lily questiona a decisão de Picard em lutar até a morte contra os Borg e expõe sua hipocrisia como capitão e ser "sensibilizado" do futuro ao compará-lo diretamente ao personagem fictício de Moby Dick.
Ao mesmo tempo, cenas em que Picard explica a Lily que a humanidade não usa mais dinheiro no futuro explica a utopia de Roddenberry ao público que não conhece sua obra e também serve como alívio cômico, já que Lily percebe que Picard não recebe um tostão por ser um atarefado capitão com 30 mil responsabilidades.
Zefram Cochrane, vivido pelo veterano James Cromwell, também é um caso interessante de contrastes. O personagem já havia aparecido na série original, interpretado por outro ator, e sua conduta como tal mostrava como sua visão foi fundamental no trajeto evolucionário da humanidade. Ele já mostrava uma sensibilidade e postura madura. Braga e Moore descontroem esse personagem no filme, mostrando um velho beberrão completamente deprimido, sem interesse em grandes jornadas ou responsabilidades, com mais interesse em dinheiro e mulheres do que fama ou grandes propósitos sócio-políticos. A forma como engenheiros que nem Geordi LaForge veneram o personagem bate direto com o desconforto que ele sente ao ser tratado assim.
A questão do Primeiro Contato é a base de Jornada nas Estrelas. Quando a humanidade mostrou-se capaz de viajar além da Terra, e descobriu como não estavam sozinhos no universo, apenas digamos que isso mudou completamente as prioridades de todas as sociedades existentes em nosso planeta. Como disse Deanna Troi, pobreza, doença e guerras deixaram de ser predominantes nos anos seguintes, porque a humanidade havia se unido num grau jamais concebido por qualquer pensador ou teórico. A cena final do filme, quando Cochrane assume a responsabilidade de dar boas vindas aos primeiros vulcanos* mostra a importância dessa evolução.
*Não há homenagem maior aos 30 anos de Jornada do que colocar os vulcanos como a primeira sociedade a estabelecer contato com a humanidade. Se Spock foi o esforço de Roddenberry a incluir um elenco interestelar, além do multicultural, colocar os vulcanos como a primeira raça foi a escolha natural dos produtores nesse capítulo. A devida homenagem aos fãs e a própria história de Jornada.
Do outro lado do filme, temos a questão dos Borg e o envolvimento de Data na trama. A introdução da Rainha Borg foi um assunto controverso até o lançamento. Quando Alice Krige* mostrou do que a personagem era capaz, boa parte dessas dúvidas e anseios foram dissipadas. Misturar sex appeal com perigo não é uma mistura nova em hollywood, mas foi muito bem aplicada nessa personagem. Ela deseja controlar Data para conseguir os códigos de segurança da Enterprise, a fim de acessar seu computador central. Mas para atingir isso, ela é capaz de estimular a humanidade dentro dele. Ao contrário da jornada repleta de clichês que havia sido o chip de emoção em Generations, a jornada de Data neste filme é mais um acerto dentre os demais. Você chega a acreditar que Data possa ser corrompido, porque quem viu o seriado durante todos os 178 episódios sabe o quanto ele deseja tornar-se humano. Ela consegue deixá-lo temporariamente num estado de tentação e conflito interno.
*A Rainha Borg fez tanto sucesso que foi reutilizada em Jornada nas Estrelas: Voyager como vilã recorrente. Susanna Thompson interpretou a personagem na maioria dos episódios. Alice Krige reprisou o papel no episódio final, pois Thompson tinha outro projeto na época.
Como Worf já era um dos personagens principais em DS9 quando o filme foi lançado, a trama teve de justificar sua vinda para a Enterprise. Graças a isso, vimos pela única vez nas telas de cinema a presença da USS Defiant, nave de Sisko, envolvida na batalha contra o cubo Borg. Worf comandou a nave em batalha, só que ela foi danificada* pelos Borg, e os sobreviventes foram transportados para a Enterprise. Como nunca tivemos um filme baseado exclusivamente em DS9, este foi o mais próximo possível.
*Ronald D. Moore era roteirista em DS9, assim como Braga era de Voyager. Quando lera o roteiro, o produtor de DS9, Ira Steven Behr, deu um ataque ao ver que a Defiant havia sido destruída na batalha. Eles prontamente tiveram de alterar o roteiro, mencionando a sobrevivência da nave, e incluindo. Ironicamente, a Defiant foi destruída na última temporada de DS9, dois anos depois.
Outro elemento de Star Trek que foi incorporado no filme foi a presença do Doutor Holográfico, interpretado pelo sempre excelente Robert Picardo*. Devido a sua origem, ele não era uma função exclusiva de Voyager, e podia ser aproveitado desta forma. Isso rendeu ao menos uma cena hilária com a Dra. Crusher.
*Picardo também apareceu em DS9 na mesma época, interpretando o médico original que serviu de base para o holograma.
Um fato menos conhecido sobre o filme é que ele teve um personagem que numa versão anterior do roteiro era para ser abertamente gay. O Tenente Hawk, vivido na época pelo então jovem e desconhecido Neal McDonough, era para ser o primeiro personagem permanente no elenco representando a causa LGBT*. Contudo, esse aspecto foi omitido nas versões posteriores, e o personagem acabou sendo assimilado pelos Borg e morto por Worf. McDonough logo deslanchou e tornou-se famoso após passar por produções aclamadas como a minissérie Band of Brothers.
*Com Bryan Fuller na produção, é quase garantido que teremos um personagem LGBT no elenco de Star Trek: Discovery.
A morte de Hawk entra para o quadro dos camisas vermelhas. Quem lembra da série original, com certeza irá lembrar da enorme quantidade de tripulantes que morreram em missões. Kirk mal lembrava dos oficiais e tripulantes mortos no fim de suas missões. E a maioria usava uniforme vermelho. Isso se tornou um clichê recorrente na série original, e em grau menor nas produções posteriores.
Já a questão de assimilação representa um dos aspectos mais perturbadores e controversos do filme. Picard ordena a Worf e os demais tripulantes que matem qualquer tripulante que tenha sido assimilado pelos Borg. De certa forma, estariam fazendo um favor a eles, ao não condená-los a uma existência traumática como drones dos Borg. Mas não deixa de ser uma forma de assassinato, condenável principalmente levando em conta os ideais que Picard e a raça humana prezavam no futuro.
A obsessão de Picard é sem dúvida a força motriz do filme. Alguns fãs questionaram esse rumo, relembrando que Picard havia voltado a ser o capitão de sempre após os eventos de sua assimilação na série. Eu argumentaria que quando o passado é doloroso, ele sempre será capaz de fazer com que você retorne a estimular os velhos instintos de auto-proteção em tempos de crise. Isso leva Picard a bater boca com oficiais que ele considera amigos próximos há anos. A cena em que ele ordena que Worf saia da ponte seria inconcebível no seriado. O nível de raiva é extremo. Se Roddenberry argumentava que humanos jamais teriam conflitos entre si no futuro, Braga e Moore conseguem habilmente extrair esse drama e conflito, criando uma situação na qual nenhum personagem consegue fugir da tensão e do conflito. Com os Borg assimilando tudo ao seu redor, não tinha outra possibilidade. Quando Worf sugere explodir a nave, era apenas a faísca que faltava para Picard literalmente explodir perante seus oficiais.
Em matéria de design, a nova Enterprise é um acerto. Por mais que a Enterprise D fosse perfeita pro seriado, seu estilo resort era claramente destinado pra estética televisiva. A nova Enterprise é mais concebida pra estética cinematográfica em todos os aspectos. Uma das melhores sequências do filme sem dúvida é a de Picard, Worf e Hawk tentando desativar o disco defletor na parte de fora da nave. Filmar uma sequência em que nossos heróis caminham em pleno espaço sideral já é um desafio em si. Fazê-lo em enfrentamento com os Borg, desprovidos de atmosfera e gravidade é muito mais complicado. Junto com a trilha de Goldsmith, Frakes e o editor John Wheeler compõem uma cena verdadeiramente sufocante. O design dos Borg no filme já eram apavorantes por si só. Ver eles caminhando em direção a Picard em passos lentos é pura agonia. Um dos poucos momentos de suspense em Jornada que realmente funcionam num nível sensorial. É também o filme de Jornada mais próximo de ser um filme de terror, tanto psicológico quanto físico.
Outro ponto positivo é que o filme jamais se prende muito nas logísticas de viagem no tempo. A tripulação não vê outra forma senão contar a verdade para Cochrane, a fim de proteger a linha temporal que eles conhecem. E Lily foi literalmente jogada na toca dos leões quando foi transportada para uma nave repleta de unidades Borg assimilando cada parte da nave em tempo real.
O bom do filme é que mesmo tendo uma trama com ritmo acelerado, ele encontra momentos que permitem aos personagens se expressarem. A cena em que Data e Picard encostam as mãos no míssil que será a nave do Primeiro Contato é um dos melhores exemplos. Ela mostra como Picard reverencia essa parte do passado, e como a percepção robótica de Data extrai uma resposta completamente diferente. Uma situação capaz de ser cômica sem recorrer a agentes externos.
Fala se muito que os filmes de Jornada com o elenco da Nova Geração foram uma decepção, incapazes de mostrar o espírito de aventura que os filmes originais tinham. Eu vejo Primeiro Contato como o oposto dessa crítica. O filme representa os melhores aspectos de Jornada nas Estrelas, consegue ser tenso, divertido, dramático e satisfatório. O elenco nunca esteve tão a vontade, a direção nunca foi tão dinâmica e o roteiro foi muito bem amarrado. O filme consegue representar aspectos diferentes da franquia e incorporá-los numa obra 100% fiel aos parâmetros de Roddenberry, enquanto que ao mesmo tempo os desafiando. Pessoalmente, nem os filmes de J.J. Abrams conseguiram atingir esse equilíbrio da mesma forma que este filme o fez. Não é a toa que Primeiro Contato teve a melhor bilheteria da franquia desde Jornada IV, dez anos antes.
E claro que isso colocou Rick Berman numa posição invejável como o produtor mais bem sucedido de toda a franquia. Sete anos produzindo a Nova Geração foram apenas o começo. Agora, ele tinha DS9 e Voyager em suas mãos, além do mandato da Paramount em seguir em frente com novos filmes com Picard e cia. E a resolução final deste filme passou a inspirar Rick Berman e Brannon Braga, de forma que o idealismo e a iniciativa de Zefram Cochrane tornariam-se o ponto de partida para o desenvolvimento da mais nova série, Star Trek: Enterprise.
No próximo post, relembraremos Jornada nas Estrelas: a Insurreição. Enquanto isso, fique com algumas cenas de Primeiro Contato, incluindo a fantástica cena do primeiro contato em si, logo abaixo:
Posted in Postado por Eduardo Jencarelli às 12:46
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