Relembrando Jornada nas Estrelas: Insurreição
(30 de ago. de 2016)
Após o imenso sucesso de Primeiro Contato, o produtor Rick Berman e sua equipe tinham toda a confiança do alto escalão da Paramount para seguir em frente com novas aventuras envolvendo Picard e sua tripulação no cinema. Tinha tudo para dar certo.
Só que nem sempre tudo ocorre como planejado.
Jornada nas Estrelas: Insurreição, lançado em dezembro de 1998, foi um dos filmes mais controversos e divisores da série. Odiado por muitos dos fãs e desprezado pela crítica. Também teve uma bilheteria morna. É evidente que misturar Jornada com a história da Fonte da Juventude teve mais negativos que positivos.
A trama mostra Picard e sua tripulação se envolvendo em uma missão da Federação em um planeta desconhecido, mas que possui uma pequena civilização pacífica. A Federação trabalha em conjunto com os So'na, alienígenas que tentam retardar a velhice usando todas as técnicas existentes. Picard é forçado a se envolver na missão porque Data havia descoberto que eles planejavam algo antiético, o que o fez se rebelar contra os demais oficiais. Investigando o caso, Picard descobre que os So'na e a Federação pretendem transferir a população do planeta sem ao menos avisá-los (graças ao uso de uma nave holográfica que manteria a ilusão de estarem vivendo no mesmo lugar). Essa é a vontade dos So'na, pois eles desejam explorar a composição química dos anéis que rodeiam o planeta. Essa combinação permite aos habitantes do planeta a manterem sua aparência física jovem. Os So'na são obcecados com essa possibilidade, e a Federação vê isso como uma oportunidade de revolucionar a medicina. Só que no processo de exploração dos anéis, o planeta se tornará inabitável. Picard considera impensável tratar uma civilização desta forma para ganho pessoal. Com isso, ele percebe que terá de ir contra a vontade da Federação a fim de proteger este povo. A tripulação da Enterprise o auxilia nesta aventura, na qual terão de enfrentar os So'na e convencer a Federação de que estão do lado certo.
Como qualquer produção, o roteiro sempre sofre mudanças. Tudo começou em 1997 quando Rick Berman se encontrou com Michael Piller e o ofereceu a chance de roteirizar o filme.
Piller havia se desvinculado de Star Trek há pouco mais de um ano. Após sete anos responsável pelos três seriados que produzira com Berman, Piller sentia-se na necessidade de se distanciar do universo de Gene Roddenberry. Ele havia passado tanto tempo defendendo as limitações impostas por Roddenberry nas questões de conflito entre personagens que ele se sentia desgastado, procurando novas iniciativas e projetos. Uma atitude até compreensível. Por isso, Berman nem esperava que ele voltasse a se envolver com a franquia. Contudo, Piller aceitou escrever Insurreição. Já fazia três anos desde o fim da Nova Geração, e ele fazia questão de escrever mais uma aventura com Picard, afinal desses sete anos encarregado da franquia, cinco deles foram no comando daquele seriado.
Piller começou a desenvolver uma trama ambiciosa na qual Picard encontraria um velho amigo de colégio e travaria uma batalha contra ele devido ao planeta. Durante o processo de criação, Piller, que lidava questões de velhice e calvície, tropeçou na idéia da Fonte da Juventude. O temor para Berman era que Patrick Stewart rejeitasse uma história que destacasse sua idade. Felizmente, Stewart topou na hora, percebendo o potencial para uma aventura heróica e leve ao melhor estilo Robin Hood. A trama a princípio seria uma versão light de Coração das Trevas (que foi a inspiração para Apocalypse Now, de Coppola). Piller assim como Stewart queria uma aventura menos sombria do que Primeiro Contato e Generations, mais próxima ao estilo e tom estabelecidos por Jornada IV.
Haviam várias idéias, incluindo o uso dos Romulanos como vilões. Contudo, Berman e a Paramount queriam mudanças no roteiro, e muitas idéias foram eliminadas, incluindo os Romulanos e o amigo/vilão. Piller também teve de lidar com incertezas dos atores, principalmente Stewart e Brent Spiner. Eventualmente neste processo, o filme foi adquirindo o resultado final que todos conhecemos. É um dos casos mais evidentes de produção em comitê. É um único prato sendo feito por muitos chefs. Piller como roteirista teve de acomodar todas as demandas. Não foi tão diferente do processo de desenvolvimento de Generations.
Acho que o filme tem boas cenas, usa o elenco de forma criativa, além de ter algumas cenas realmente divertidas. Contudo, se há um filme da Nova Geração que se pode acusar de parecer mais um episódio do seriado que um longa, sem dúvida é este. A direção de Jonathan Frakes faz o melhor que pode, mas o roteiro final de Piller simplesmente não se sobressai dentre os demais. Boa parte do conflito das versões anteriores acabou diluído. O desenvolvimento da raça Ba'ku também não auxiliou nesse quesito. Tanto a escolha de atores quanto a direção de arte e figurino contribuíram para um retrato quase estereotipado de uma sociedade que leva o público a questionar por que Picard resolveu ajudá-los. Fora o caso amoroso que ele tem com a personagem Ani'j (Donna Murphy), não há muita motivação.
O aspecto do filme que mais funciona sem dúvida é mais uma vez a trilha composta por Jerry Goldsmith. Ele consegue criar temas completamente diferentes de Primeiro Contato, mas que se adequam a esse mundo no qual passamos duas horas. Uma mistura de inocência e aventura que complementam bem os temas tradicionais já estabelecidos.
No quesito comédia, o filme tenta várias piadas baratas em detrimento dos personagens que acabam com o tiro saindo pela culatra. Dá para ver que os atores estão se divertindo, até mais do que qualquer outra produção. Entretanto, cenas como a que Picard dança mambo, recapturando sua juventude, são mais desconfortáveis do que engraçadas. Ver Troi e Crusher discutindo firmeza dos próprios seios também não funciona, e é um detrimento em qualquer questão progressista no debate entre os sexos, até quando sabemos o potencial das personagens. Worf lidando com verrugas e agressão em excesso por voltar a adolescência é o cúmulo da forma como os roteiristas vem humilhando o personagem.
Há também cenas realmente engraçadas. Somente com Stewart, Spiner e Michael Dorn seria possível criar uma cena em que Picard e Worf cantam uma música de Gilbert e Sullivan enquanto perseguem Data numa nave auxiliar. Não é uma cena que agradará a todos, mas tem seu apelo para aqueles que gostam de ver os personagens saindo da zona de conforto.
Quanto aos vilões, os atores fazem o que podem com o roteiro que tem. Anthony Zerbe consegue transmitir um personagem visívelmente comprometido moralmente, enquanto que F. Murray Abraham, um intérprete reconhecidamente talentoso, é forçado a atuar cenas embaraçosas do vilão Ru'afo tendo ataques de chilique quando seus planos não vão de acordo. Os So'na não são nem um pouco sutis como vilões, e a tentativa de Frakes em criar o mesmo clima de filme de horror que havia gerado com os Borg em Primeiro Contato também gera resultados difusos. É até interessante mostrar o quanto eles estão dedicados em retardar o envelhecimento, usando técnicas mirabolantes e até horrorizantes, mas isso apenas faz o espectador perguntar a si mesmo por que a Federação se envolveria com esse grupo.
Os efeitos visuais representam a época em que foram feito. 1998 foi o ano em que computação gráfica estourou em hollywood, só que os técnicos e designers ainda não haviam dominado essa nova arte. Isso resulta em cenas visívelmente fajutas, onde se percebe o quanto os modelos digitais são artificiais. O objetivo de um efeito é que ele não pareça como tal. Assim como as animações dos Caça-Fantasmas de 1984 ficaram datadas, o mesmo vem ocorrendo com as naves computadorizadas neste filme.
Às vezes, o filme consegue acertar. A cena em que Geordi LaForge recupera sua visão e enxerga seu primeiro sol nascente é um momento isolado, mas eficiente e dramático. Riker e Troi reatarem o relacionamento pode ser visto como um acerto. Após anos de amizade profissional no seriado, já era mais do que hora de dar o passo seguinte.
Contudo, Data sofre um retrocesso neste filme. Após ser usado como o motor inicial da trama numa sequência questionável na qual ele enfrenta oficiais usando uma jaqueta invisível, ele se envolve na tentativa de fazer amizade com um garoto Ba'ku. Isto decorre do fato de que Data nasceu adulto, e nunca teve a oportunidade de ser uma criança. De certaforma, isso até encaixa na sua jornada para se tornar mais humano. O ponto negativo dessa questão é a ausência quase que completa do chip de emoção, introduzido nos filmes anteriores. Michael Piller admitiu que não quis usar o chip, pois achava que isso invalidava a jornada de Data. Ele usa a desculpa que Data não levou o chip nessa missão, e levando em conta o status do chip em seu sistema estabelecido nos longas anteriores, essa é uma desculpa que não cola. Após as experiências em Generations e principalmente Primeiro Contato, era de se esperar que víssemos um Data mais experiente. Não é o caso desta vez.
A primeira metade do filme é a investigação. A segunda metade é basicamente uma longa sequência de ação. Como Ru'afo não precisa mais esconder o fato de que está abduzindo pessoas para outro planeta, ele recorre a táticas mais violentas (mas não tão violentas à ponto de gerar uma censura alta). Com isso, não há nenhuma dúvida de que Picard está do lado certo. Isso piora ainda mais quando é revelado que os So'na são na verdade dissidentes dos Ba'ku que foram expulsos 100 anos antes. Em outras palavras, a Federação havia se metido numa guerra de famílias. Meu problema nessa questão é que o filme se chama Insurreição.
Quando Kirk sequestrou a Enterprise para resgatar Spock no planeta Gênesis (no terceiro filme), ele claramente havia desobedecido a quinze regras e ordens da Federação e pagou o preço por isso no filme seguinte. Já Insurreição jamais hesita em colocar Picard numa posição moral superior a do próprio almirante que o supera na hierarquia. Vale lembrar que Piller se especializou em escrever diálogos em que Picard afirma essa superioridade, porque ele sabe que Stewart é capaz de vender de forma crível qualquer cena com uma seriedade e sinceridade que desarmam qualquer adversário. Esse pra mim é o problema principal do filme. Se a idéia era colocar Picard contra a Federação, que tivesse mais ambição e disposição para ir além de uma simples aventura do bem contra o mal. Com a situação em Deep Space Nine deteriorando com a guerra da Federação contra os Dominion (que é mencionada no filme), e personagens como Sisko se comprometendo moralmente de todas as formas, acho que o filme poderia ter capitalizado mais nesse rumo. Era essa a expectativa que eu tinha quando o título do filme foi anunciado.
E expectativa é uma palavra-chave. Insurreição teve a missão desagradável de tentar se diferenciar e ao mesmo tempo superar Primeiro Contato. Era uma tentativa em vão, assim como Jornada III não teve chance de superar Jornada II. Quando o patamar fica tão alto, é impossível ir além, por mais que tente. Só que foram mais erros do que se esperava, num processo criativo que acabou tropeçando*.
*Boa parte desse processo é detalhada num livro não-oficial que o próprio Michael Piller escrevera após a produção do filme. Como não conseguira encontrar uma editora, o livro permaneceu arquivado, até que foi lançado na internet (e depois removido). É uma obra que detalha bem como o processo criativo numa produção hollywoodiana acaba tendo de sobrepor inúmeras barreiras, sejam atores, produtores, executivos, dentre vários outros fatores. Caso queira encontrar o livro, ele se chama Fade In: The Making of Star Trek Insurrection. Pode ser difícil, mas não impossível, de encontrá-lo online.
De qualquer forma, está longe de ser um filme intragável. Muito pelo contrário, dá para assistí-lo e ao menos se divertir um pouco. Mas é sem dúvida uma das produções mais fracas e falhas. O resultado final do filme fez com que a Paramount repensasse o futuro da Nova Geração no cinema. Com Berman ocupado finalizando DS9 e Voyager, e concebendo um novo seriado, era melhor dar um tempo nos filmes até que viesse uma história melhor. Deixar o público respirar um pouco sem que ficasse saturado com excesso de Jornada na TV e no cinema. Foram quatro anos de espera até o filme seguinte.
No próximo post, falaremos de Nemesis, o último filme da Nova Geração. Enquanto isso, fique com duas cenas de Insurreição, logo abaixo:
Posted in Postado por Eduardo Jencarelli às 11:34
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