Outra Ótica na Questão do Anti-Herói
(20 de mai. de 2020)
Aproveitando para abordar uma questão que deixei de lado no texto anterior.
Um dos problemas que eu havia citado na questão da relação do público com o anti-herói era o fato de muitos espectadores torcerem pelos protagonistas apesar de suas ações moralmente desprezíveis. Citei inclusive o fato de tantos abraçarem a filosofia de personagens como o Capitão Nascimento na vida real.
E existem também aqueles casos de pessoas incapazes de separarem a ficção da realidade, a ponto de assediarem certos atores pela forma como os papéis ficcionais deles os afetaram. Um exemplo disso foi a forma como fãs atacaram a atriz Anna Gunn por seu papel de Skyler White em Breaking Bad, a demonizando por ser um obstáculo moral no caminho de Walter White. Como se ela realmente fosse a vilã da história, ignorando completamente as mortes causadas pelo professor.
Mas existe um gênero na ficção no qual é possível se investir e até torcer para protagonistas desse cunho sem qualquer ressalva moral: comédia. Especificamente sátira. Quando a narrativa flerta com o ridículo, fica muito mais fácil abordar esses personagens sem perder a objetividade. Mas vou citar como exemplo uma série dramática nesse caso, cujo conteúdo se encaixa bem.
Succession é uma série recente da HBO que aborda as vidas de membros de uma família multimilionária e dona de um conglomerado midiático norte-americano (supostamente baseada na dinastia de Rupert Murdoch). Temos o patriarca envelhecido com saúde debilitada que mantém controle de suas empresas com mão de ferro, e do outro lado temos seus filhos que lutam pelo controle da mesma e tentam sair da sombra do pai, mostrando do que são capazes. É uma trama clássica hollywoodiana, mas no caso dessa série, estamos lidando com seres humanos moralmente desprezíveis em todos os aspectos.
Um aspecto interessante dessa produção é que mesmo sendo tecnicamente da categoria drama, ela acabou por empregar vários roteiristas mais conhecidos de comédia, incluindo vários veteranos da série Veep. Para quem não lembra, Veep (2012-2019) foi uma sátira da política norte-americana, focada na vice-presidente Selina Meyer (Julia Louis-Dreyfus) e sua turma de colaboradores e agentes políticos. Pessoas igualmente desprezíveis capazes de qualquer manobra para se perpetuar no poder. E é uma série hilária, escatológica e surpreendentemente verídica. Uma das melhores e mais ousadas comédias da década.
Voltando a Succession, percebemos que não são personagens com os quais a maioria do público teria capacidade de se conectar. O patamar financeiro deles os dá uma liberdade de alcance quase infinito, a tal ponto de não terem qualquer compromisso com moral ou ética. Vemos isso logo no primeiro episódio quando resolvem fazer uma aposta de o filho do jardineiro é capaz de acertar uma bola, prometendo uma recompensa de US$ 1 milhão caso consiga. Que espectador teria simpatia com personagens que agem dessa forma?
Essa brincadeira intencional com as emoções e expectativas das demais classes sociais deixa claro em que nível moral eles se encontram. A única forma de conectarmos com esses personagens é investindo no exagero e no ridículo. Cenas como o filho mais novo se masturbando na janela do escritório da empresa - um dos pontos geográficos mais altos de Nova York - ou o pai fazendo o presidente dos EUA esperar na linha telefônica de propósito são formas de extravasar essa insanidade e ainda assim manter essa objetividade. Quando a série expõe o ridículo dessa forma, ela se sobressai, mesmo sendo um drama que nos pede para investir na jornada do filho que é exonerado pelo pai. E mesmo assim, esse mesmo filho não deixa de ter seu lado sociopata.
No fim das contas, vemos entretenimento para fugir da realidade. Mas é pertinente saber separar a ficção da realidade e manter objetividade nessa relação.
Posted in Postado por Eduardo Jencarelli às 12:10
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