Aproveitando para abordar uma questão que deixei de lado no texto anterior.


Um dos problemas que eu havia citado na questão da relação do público com o anti-herói era o fato de muitos espectadores torcerem pelos protagonistas apesar de suas ações moralmente desprezíveis. Citei inclusive o fato de tantos abraçarem a filosofia de personagens como o Capitão Nascimento na vida real.


E existem também aqueles casos de pessoas incapazes de separarem a ficção da realidade, a ponto de assediarem certos atores pela forma como os papéis ficcionais deles os afetaram. Um exemplo disso foi a forma como fãs atacaram a atriz Anna Gunn por seu papel de Skyler White em Breaking Bad, a demonizando por ser um obstáculo moral no caminho de Walter White. Como se ela realmente fosse a vilã da história, ignorando completamente as mortes causadas pelo professor.


Mas existe um gênero na ficção no qual é possível se investir e até torcer para protagonistas desse cunho sem qualquer ressalva moral: comédia. Especificamente sátira. Quando a narrativa flerta com o ridículo, fica muito mais fácil abordar esses personagens sem perder a objetividade. Mas vou citar como exemplo uma série dramática nesse caso, cujo conteúdo se encaixa bem.


Succession é uma série recente da HBO que aborda as vidas de membros de uma família multimilionária e dona de um conglomerado midiático norte-americano (supostamente baseada na dinastia de Rupert Murdoch). Temos o patriarca envelhecido com saúde debilitada que mantém controle de suas empresas com mão de ferro, e do outro lado temos seus filhos que lutam pelo controle da mesma e tentam sair da sombra do pai, mostrando do que são capazes. É uma trama clássica hollywoodiana, mas no caso dessa série, estamos lidando com seres humanos moralmente desprezíveis em todos os aspectos.


Um aspecto interessante dessa produção é que mesmo sendo tecnicamente da categoria drama, ela acabou por empregar vários roteiristas mais conhecidos de comédia, incluindo vários veteranos da série Veep. Para quem não lembra, Veep (2012-2019) foi uma sátira da política norte-americana, focada na vice-presidente Selina Meyer (Julia Louis-Dreyfus) e sua turma de colaboradores e agentes políticos. Pessoas igualmente desprezíveis capazes de qualquer manobra para se perpetuar no poder. E é uma série hilária, escatológica e surpreendentemente verídica. Uma das melhores e mais ousadas comédias da década.


Voltando a Succession, percebemos que não são personagens com os quais a maioria do público teria capacidade de se conectar. O patamar financeiro deles os dá uma liberdade de alcance quase infinito, a tal ponto de não terem qualquer compromisso com moral ou ética. Vemos isso logo no primeiro episódio quando resolvem fazer uma aposta de o filho do jardineiro é capaz de acertar uma bola, prometendo uma recompensa de US$ 1 milhão caso consiga. Que espectador teria simpatia com personagens que agem dessa forma?


Essa brincadeira intencional com as emoções e expectativas das demais classes sociais deixa claro em que nível moral eles se encontram. A única forma de conectarmos com esses personagens é investindo no exagero e no ridículo. Cenas como o filho mais novo se masturbando na janela do escritório da empresa - um dos pontos geográficos mais altos de Nova York - ou o pai fazendo o presidente dos EUA esperar na linha telefônica de propósito são formas de extravasar essa insanidade e ainda assim manter essa objetividade. Quando a série expõe o ridículo dessa forma, ela se sobressai, mesmo sendo um drama que nos pede para investir na jornada do filho que é exonerado pelo pai. E mesmo assim, esse mesmo filho não deixa de ter seu lado sociopata.


No fim das contas, vemos entretenimento para fugir da realidade. Mas é pertinente saber separar a ficção da realidade e manter objetividade nessa relação.


Posted in Postado por Eduardo Jencarelli às 12:10  

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