Lovecraft Country - Uma mistura de convenções e gênero
(4 de set. de 2020)
Acho que posso dizer com convicção que Lovecraft Country é a série sucessora espiritual de Watchmen.
Quem assistiu a Watchmen no ano passado sabe que a série concluiu sua primeira e única temporada. Mais do que atingir as expectativas da obra original de Alan Moore, a série da HBO foi capaz de encontrar novos ângulos e explorar temas que os quadrinhos não haviam explorado. Principalmente a questão racial que foi central na série, com um elenco de maioria negra e dando uma aula de história para o público ao mostrar o pouco conhecido e verídico massacre de Tulsa da década de 1920. Foi uma temporada ousada e quase impecável. Mas sem planos para futuras temporadas, os fãs dessa excelente adaptação de Damon Lindelof ficaram órfãos.
Eis que surge Lovecraft Country. Adaptação do romance de Matt Ruff produzida pela roteirista Misha Green, em parceria com os produtores Jordan Peele e J.J. Abrams.
Nunca li uma obra de H.P. Lovecraft. Conheço ele por reputação como autor clássico do gênero de terror. Nunca foi um gênero que me prendeu muita a atenção, tanto no cinema e na TV quanto na literatura. Mas a série está sendo capaz de prender por completo graças a forma como apropria as convenções do gênero e conta sua própria história original com personagens complexos e interessantes.
Assim como Watchmen, Lovecraft Country aborda vários gêneros e convenções narrativas usando como tema central a questão racial. A série se passa na década de 1950, logo após a Guerra na Coréia. Seguimos os passos de Atticus Freeman (Jonathan Majors) e Letitia Lewis (Jurnee Smollett-Bell). Atticus é veterano da guerra e tem uma relação complicada com o pai, Montrose (Michael K. Williams). Atticus cresceu principalmente com a influência do tio, George (Courtney B. Vance), um escritor que fez dele um leitor assíduo de inúmeras obras, principalmente de ficção científica. Já o pai tem uma relação abusiva com ele, fruto de uma infância igualmente abusiva, passada de geração a geração, graças a herança escravocrata do país.
Existe logo de cara esse conflito inicial. Nossos protagonistas não são estereótipos, e sim pessoas estudiosas que vivem num contexto marcado pelo racismo e pelo ódio. Por mais que tentem estudar, trabalhar, viver honestamente e tentem ser mais, sempre serão vistos como invasores, como criminosos, como erro da natureza pela classe dominante. Sempre vistos com desprezo pelos vizinhos brancos. É um conflito principalmente de legado negro e questionando o revisionismo histórico das elites.
Sem entrar muito em território de spoilers, a série começa com a busca de Atticus pelo pai. Ajudado pelo tio e pela própria Letitia, amiga de infância, eles embarcam numa jornada pelo país que termina envolvendo passagens por distritos guardados por policiais territoriais* e racistas, e culmina com um encontro quase fatal com monstros que saem do chão durante a noite. Monstros que parecem que saíram das páginas de Lovecraft. Só que passar pelos policiais de forma ilesa gera muito mais tensão e medo do que o encontro com os monstros em si. O tema é sem dúvida de que o ser humano é muito mais perigoso que o inexplicável e o sobrenatural.
*Por sinal, há um capitão da polícia que é um dos personagens mais asquerosos que já vi.
Fui então descobrir que H.P. Lovecraft era na verdade um pessoa racista. Fato que eu não sabia.
Não gosto da ideia de colocar tarjas em pessoas. Essa é em si uma atitude racista. Mas também não dá para ignorar os aspectos de cada um. Uma pessoa é definida pelo que ela sente. No caso de Lovecraft, isso significa levar em conta como essa mistura de medos e etnocentrismo informam a tensão presente em suas obras. Medo é um aspecto central do gênero que ele dominou. Não que isso impeça que outros queiram ler suas obras. Acho importante separar o artista da arte que ele cria, desde que estejamos claros sobre quem essa pessoa é e o que ela representa e tenta expressar.
Já a série faz uma escolha narrativa bem interessante. Ela não se transforma em um filme de 10 horas, ou uma novela prolongada. A trama principal, que envolve um mistério a respeito do pai de Atticus e uma ligação com uma seita de feiticeiros brancos da época colonial, não é o aspecto central da série. Ela é subdividia em episódios quase isolados, envolvendo uma aventura distinta. Isso preserva o estilo tradicional de seriado norte-americano, no qual cada episódio é uma história em si. O primeiro episódio lida com o desaparecimento e a procura pelo pai. O segundo é uma história de Frankenstein na casa dos horrores, enquanto no terceiro Letitia compra uma casa em Chicago que é habitada pelos espíritos de escravos torturados.
E todas essas tramas vem com começo, meio e fim. Isso gera uma segurança e estrutura que a maioria das séries atuais não possuem. Isso é algo que a Netflix faria bem em aprender. Nem tudo precisa ter gancho pro episódio seguinte. É perfeitamente possível fazer um binge-watching de uma série assim.
Sendo uma produção HBO, a série não poupou nem um pouco no design de produção, nos efeitos e na fotografia. Cada episódio parece uma megaprodução de cinema. E o elenco 90% afro-americano é brilhante. Sigo a carreira de Jurnee Smollett-Bell desde sua participação em Friday Night Lights. Ela possui uma paixão e dedicação a suas personagens que fortalece cada cena. Há uma cena em Lovecraft Country em que ela passa por uma experiência de vida ou morte, e a reação dela a isso é uma das cenas mais fortes que eu já vi em qualquer produção. E eu não conhecia Jonathan Majors. Uma revelação e alguém promissor a ser ver nos próximos anos.
A série continua no ar na HBO, com sete episódios ainda para serem exibidos. Recomendo com toda certeza.
Posted in Postado por Eduardo Jencarelli às 11:06
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