The Plot Against America - Retrato de Época ou um Espelho da Realidade Atual?
(8 de abr. de 2020)
Muitos usam atores como referência para escolher qual filme ou série irão assistir. Pessoalmente, faço essa escolha usando escritores e roteiristas como referência.
David Simon é um nome obrigatório pra quem estiver analisando qualquer lista de 5 melhores séries já exibidas. Com certeza, alguém já ouviu falar de The Wire (A Escuta, no Brasil). Caso não tenha, vamos relembrar.
David Simon começou como jornalista, e fez carreira como repórter policial no Baltimore Sun, acompanhando detetives em diversos casos. Esse trabalho foi a base para um livro de não-ficção, Homicide: A Year in the Killing Streets. Esse livro então serviu de base para a aclamada série policial Homicide: Life on the Street, que durou 7 temporadas de 1993 a 1999, e um telefilme em 2000. Simon permaneceu na carreira de jornalista e escritor até que teve a oportunidade de escrever um episódio de Nova York contra o Crime. Isso lhe garantiu um primeiro passo em Hollywood. Em seguida, tornou-se parte da sala de roteiristas de Homicide nas últimas temporadas.
Simon então assinou contrato com a HBO e produziu uma aclamada minissérie chamada The Corner (A Esquina), que adaptava a jornada de três usuários de drogas pesadas nos distritos pobres de Baltimore. Isso que finalmente o leva a estabelecer uma relação duradoura e permanente com a cúpula da HBO, levando-o a vender a ideia de The Wire para o canal.
A série mostra a guerra contra as drogas em etapas. A primeira temporada mostra uma narrativa convencional de policiais investigativos indo atrás de um grupo específico de traficantes (a família Barksdale). Já a segunda mostra de onde vem e onde passa o dinheiro, mostrando todo um mundo a parte envolvendo sindicatos nas docas e a máfia grega. Já a terceira inclui o lado político de Baltimore e como esse mundo colide com as políticas de combate às drogas. A quarta temporada entra no ensino público e mostra como o crime seduz jovens pobres sem futuro, e por fim a quinta temporada mostra o papel da mídia e do jornalismo nesse processo todo. Em parceria com o ex-policial e professor de ensino público Ed Burns, Simon elaborou toda essa narrativa dramática, todo esse universo fictício de Baltimore populado pelos mais diversos personagens e mostrando de forma nua e crua como o sistema funciona*.
*E de forma bem menos didática e muito mais eficiente que qualquer Tropa de Elite.
Foram cinco temporadas brilhantes, de 2002 a 2008, que demonstraram todo o potencial de contar uma história fictícia tão próxima da realidade em que vivemos. Este tem sido o talento de Simon. Contar histórias de aspecto sociológico. Toda sua filmografia é impecável: Generation Kill (guerra no Iraque), Treme (Nova Orleans, pós-Katrina), The Deuce (a indústria pornô nos anos 1970/1980 e a eventual "limpeza" de Nova York), dentre outros projetos. As séries de Simon nunca foram líderes de audiência (até porque pra isso a HBO usa blockbusters como Westworld e Game of Thrones), mas são reconhecidas e aclamadas de forma quase unânime pela crítica.
Passado toda essa longa recapitulação, vamos ao motivo principal do título de hoje: The Plot Against America.
Simon e Ed Burns se reuniram a fim de desenvolver essa nova minissérie para a HBO. Baseada no livro de 2004, do recém-falecido Philip Roth, a trama mostra uma realidade alternativa dos EUA em 1941, na qual o presidente Franklin Roosevelt teria perdido nas eleições presidenciais para um piloto de aviões famoso, Charles Lindbergh.
Historicamente falando, sabe-se que Lindbergh existiu de verdade, e foi realmente um ativista político. Ele fez campanha contra o envolvimento dos EUA, na Segunda Guerra Mundial, alegando que o ocidente precisava se manter unido e livre de qualquer conflito destrutivo a longo prazo. Só que ele também tinha visões controversas a respeito de raça e pureza. Para ele, a raça branca tinha de ser preservada, e ele via a presença crescente de judeus como um caldeirão de problemas a risco de explodir. Claro que quando a Segunda Guerra explodiu de fato e o campos de concentração foram expostos, Lindbergh acabou reconsiderando suas ideologias.
Simon e Burns fizeram ampla pesquisa dessa história, criando assim essa história norte-americana alternativa que serve como pano de fundo para a trama da minissérie. A trama mostra essa reviravolta política do ponto de vista de uma família judia modesta que vive em Nova Jersey.
O patriarca Herman Levin (Morgan Spector) é um judeu idealista de esquerda que tem o hábito de frequentar o cinema local para saber as notícias da guera enfrentada pelos britânicos contra o nazismo, e também ouve diariamente um âncora de rádio anti-Lindbergh, reforçando assim a bolha na qual vive.
Contudo, essa bolha vai sendo rompida quando Lindbergh conquista o apoio de cidadãos e até vizinhos próximos. Inclusive, sua cunhada Evelyn Finkel (Winona Ryder) entra em um relacionamento com o rabino e ativista Lionel Bengelsdorf (John Turturro) que lidera a comunidade judaica local e apoia Lindbergh em sua campanha política. Ambos trabalham pra incorporar esses interesses judaicos às iniciativas de Lindbergh. A princípio, tudo isso é ancorado na ideia que judeus estão apoiando Lindbergh para impedir que o país que os abrigou entre numa guerra que pode colocar tudo a perder.
Só que a medida que a série progride, vemos que Lindbergh na presidência tem fascínio pelos alemães e passa a convidar oficiais nazistas pra eventos. Ao mesmo tempo, os apoiadores do presidente, sentem-se encorajados a demonstrar cada vez mais seu antissemitismo, sentimento cada vez maior na população.
Simon, por sua vez, é corajoso ao mostrar essas consequências através de todos os pontos de vista da família, incluindo os filhos mais jovens de Herman e Elizabeth (Zoe Kazan), que vêem a escalada gradual dessa onda de ódio e intolerância. Já Alvin (Anthony Boyle), sobrinho da família, e defensor radical do judaísmo migra ilegalmente para o Canadá, a fim de ingressar na guerra, e acaba perdendo uma das pernas no combate. E há um conflito permanente entre Herman e Elizabeth, e o desejo dela emigrar para o Canadá, a fim de escapar dessa perseguição, mas enfrenta a resistência do marido em querer manter seus valores e suas raízes naquele lugar que ele ainda considera como um lar.
Quatro episódios já foram exibidos, com os dois próximos vindo em breve. Recentemente, oficiais do FBI de Hoover começaram a questionar os filhos a respeito das intenções de Alvim em ter ido a guerra, o que leva ao cadeirante perder o único emprego que ainda tinha. E assim vão caindo as máscaras, e pessoas que antes consideravam-se amigas passam a ser vista com outros olhos. Olhos de desconfiança. Começa assim o início de um movimento até pior que o Macarthismo.
E para uma produção requintada de época, é difícil as vezes separar o ódio e intolerância vistos do que vemos hoje nas ruas. Dá para se dizer, sem qualquer ressalva, que é historicamente fácil deixar os valores democráticos de lado, e perder nossas liberdades básicas sem que sequer percebamos. Não há dúvidas que Simon elaborou essa versão alternativa da história norte-americana como uma obra de reflexão em meio ao caos político e social criado pela divisão e extremismo crescente em meio a presidência de Trump. Mas o mesmo pode ser facilmente aplicado no contexto atual em que nós brasileiros vivemos sob a presidência de Bolsonaro.
Vemos isso com a quantidade de mentiras que ele propaga pelas redes sociais, que então são ampliadas pelas milícias digitais. Usam o mesmo discurso de ódio e intolerância como método para se fortalecerem politicamente. Apesar de ser eleito teoricamente para governar a todos, ele só joga com a base mais fiel. E assim as divergências vão crescendo, e os conflitos se exacerbando. Chega ao ponto do ridículo quando temos pessoas defendendo a quebra de quarentena em meio a essa pandemia por temer a perda da legitimidade de sua ideologia política e econômica.
Por isso que reforço a necessidade de conferir obras como essa. Não só é um retrato nu e cru dos problemas que enfrentamos, mas são séries do mais alto calibre narrativo e dramático.
Posted in Postado por Eduardo Jencarelli às 11:56
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